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LAERCIO DE FREITAS

por

Helton Altman

Luis Nassif 

Aluízio Falcão

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CAMINHOS CRUZADOS

por Helton Altman

Lembro exatamente do nosso primeiro chope. Foi no Café com Arte na Rua Bela Cintra, agora em 1981. Foi uma farra. O Tio, inspiradíssimo, dividindo a 4 mãos o piano com Arthur Moreira Lima. Todos os músicos felizes e aplaudindo, aquilo que, na verdade, era uma comemoração do grande show realizado no Teatro Cultura Artística, que coproduzi com Luís Paulo Lucena.

Assisti da plateia, fotografando e gravando num gravador de fita cassete, com teclas barulhentas, que me obrigavam a esperar os aplausos para mexer no gravador, ou seria descoberto pela segurança.

Conhecia o “São Paulo no Balanço do Choro”, maravilhoso, opinião que era avalizada por todos os músicos com quem dividia meu encantamento. Mas não o conhecia pessoalmente, nunca o tinha visto tocar.

No meio do show, Arthur Moreira Lima sai do piano, vai ao centro do palco e anuncia que convidaria para uma canja um compositor, arranjador e maestro que, no piano, representava para ele “a mistura de Ernesto Nazaré e Oscar Peterson. Com vocês,  Laercio de Freitas”.  A plateia foi abaixo,  Laercio  o  “Tio”  fez uma  apresentação  histórica   e  nunca  mais  nos  perdemos.

Passei a acompanhá-lo. Geralmente ia ao Baiuca Jardins para ouvi-lo tocar, conversar e, claro, aprender com seus conselhos: “Filhote se você estiver dirigindo numa estrada e uma neblina forte aparecer... (silêncio) encoste o carro filhote, espere ela passar”. Sábio conselho.

Em 1984 estava montando o time para tocar no Vou Vivendo, pensei logo nele:

— Tio, topa tocar no Vou Vivendo? Vou abrir em junho, é uma homenagem ao Pixinguinha.

Depois de consultar sua mulher, a produtora Piki de Freitas, carinhosamente chamada por ele de Pikika (e hoje também por mim), ele respondeu:

— Claro que topo, filhote!

Precisávamos então comprar um piano. Fomos juntos à Casa Jana. Depois de experimentar vários, sem esquecer que a grana era pouca, tocando e olhando para mim, ele falou:

— Filhote, é esse aqui.

— Esse é o melhor? —perguntei.

— Não sei, filhote, mas tem som de saloon, é desse que precisamos.

E assim foi. Saímos para comemorar numa casa de esfihas na Rua Cardoso de Almeida e, como nada é à toa, o dono que nos servia veio ao nosso encontro e falou:

— Estava ouvindo a conversa. Meu tio também é da música —era sobrinho do maestro Lindolfo Gaya. É mole?!

Desde que nossos caminhos se cruzaram, são inúmeras as histórias importantes no nosso relacionamento pessoal e musical.

Minha militância política sempre se deu através da cultura —reuniões, festivais, espetáculos, gravações e muita conversa com músicos, representantes da classe, figuras geniais e históricas. Em qualquer trabalho, me preocupo com a importância, a qualidade e, como me ensinou Hermínio Bello de Carvalho, com o “resíduo cultural” —aquilo que permanece como registro do projeto. Isso permeou minha vida como produtor. “Sempre faça um folheto, um cartaz, uma gravação, fotografe, filme, divida essas informações com todos que se interessarem, não sonegue conhecimento”, apreendi com o poeta.

Laercio de Freitas octogenário merecia um projeto especial que registrasse esse legado, enorme e valioso, merecia que seu conhecimento e sua obra chegassem às pessoas, com acesso às partituras. Para muitos músicos, era inviável tocá-las de ouvido, pelo alto nível de complexidade. Mantivemos a maneira de escrever do Tio, todas as partes em 2/2.

Dezenove músicas e um bônus, o Bosque dos Jequitibás, com a própria caligrafia do mestre. As partituras foram diagramadas para o estudo. Quem quiser tocar as músicas completas na estante do piano, terá a possibilidade de imprimir pelo site próprio do projeto.

Convidamos um time brilhante de músicos para esse registro inédito, verdadeiros craques, que conviveram por quatro dias com muita inspiração, amizade, estudo e competência, sempre com a presença e pequenas dicas de Laercio. Não perdeu um momento importante nessas doze horas por dia, com ouvidos atentos e alegria contagiante.

Depois do unânime “São Paulo no Balanço do Choro”, há exatos 42 anos, temos um registro especial.

Agradecemos a Armando Aflalo (em memória), produtor do “São Paulo no Balanço do Choro”, e ao mestre Aluízio Falcão, que, como diretor artístico do Selo Eldorado, aprovou de cara, com entusiasmo, a realização do LP. O que eles fizeram foi o início deste projeto: vinte partituras distribuídas em 4 álbuns, um CD, um documentário e um site.

Radamés Gnattali considerava Laercio um gênio; Cristovão Bastos declarou ser o “Tio” seu ídolo; eu declaro aqui todo meu amor por ele.

O som imprevisível  de um  gênio do piano

 por Luis Nassif

Comecei no jornalismo cobrindo Artes e Espetáculos e escrevendo sobre música. Com 4 anos de jornalismo mudei para Economia e não mais saí. Mas continuei dando meus pitacos em música. Quando fui para o Jornal da Tarde, em 1979, consegui mais espaço para meus artigos, especialmente sobre choro e música instrumental.

Mesmo assim, surpreendi-me quando Armando Aflalo, produtor musical do Estúdio Eldorado, encomendou-me o texto da contracapa do LP de Laercio de Freitas. Tinha uma vaga ideia sobre quem fosse. Sua única música conhecida era “Capim Gordura”, uma sátira à música caipira de imenso sucesso.

Assim, pedi para assistir as gravações para ter uma ideia sobre seu trabalho. E, admito, foi um soco no queixo. O som que saía dos estúdios Eldorado não era para se entender de imediato, uma sucessão de harmonias, uma melodia cheia de imprevistos, deixando desesperado o Xixa, grande cavaquinho, mas de choro tradicional. Quem se dava bem, dominando de imediato as harmonias, era o grande Heraldo do Monte, graças à sua experiência prévia com as bandas de frevo e com a leitura rápida de partituras. Escrevi a contracapa mencionando a palavra gênio. Na música, gênio são aqueles que constroem seu universo particular de sons,  mas dentro de uma lógica, difícil de classificar

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                                                                                                                      à primeira audição, mas  sempre lógica.  Não  se tratava apenas de notas e acordes esparsos jogados na melodia. Comparei Laercio e Cazé e outros gênios ignorados, músicos de músicos. De fato, em qualquer ramo da arte, os grandes inovadores têm um conhecimento prévio sólido. Em cima desse conhecimento, passam a tecer sua própria lógica.

Alguns anos antes, no Festival de Choro da Bandeirantes, conheci Esmeraldino Salles, o “Ao Nosso Amigo Esmê”, subtítulo do LP São Paulo no Balanço do Choro de Laercio e, ao lado de Orlando Silveira, pioneiro de uma nova linguagem do choro, tão rica e complexa que deixou poucos seguidores.

Durante muito tempo fiquei preocupado com o “gênio” que incluí no texto. Teria sido excesso de entusiasmo pela primeira contracapa que escrevi? Aí, toca ouvir de novo o LP e constatar que era gênio mesmo.

A cisma terminou em uma conversa com Raphael Rabello, o imenso violonista que se tornara meu amigo. Certa vez indaguei dele quem Radamés Gnattali tratava como “gênio”. E Raphael:

— Dos vivos, apenas um: Laercio de Freitas, o Tio.

Depois disso, na convivência com grandes músicos, me dei conta de que nenhum passou incólume pelo Tio. De pianistas, de Cristovão Bastos a Dudah Lopes, solistas e arranjadores, como Proveta, violonistas, como Alessandro Penezzi, todos beberam no Tio. Pequenos conselhos, dicas, em tom hermético, como o das divindades afro, os pretos velhos sábios, mudaram a vida musical de toda uma geração de músicos de primeira linha. As composições inéditas de Laercio, apresentadas nesse projeto, mostram a versatilidade do mestre.

Reparem no “Clube do Campo”, com o grave do piano em escalas integradas com o bordão

do violão, intercalando com os solos do meio e do agudo do piano e com os instrumentos de sopro. No meio, intervenções de acordes, com vida própria, servindo de base para os solos, mas sendo, ao mesmo tempo, um elemento melódico, construindo uma avenida por onde transitam os contrapontos.

Ou, em Planalto Paulista, os volteios da melodia, como um drible de Ronaldinho, ameaçando ir e não indo, voltando por onde foi, indo para onde não se espera, e, no final da peça, compondo um todo harmônico, que só se entende depois de saborear o todo. E dali, para o lirismo aconchegante da Fonte de Santa Teresa.

Ou de Arismania, homenagem a Arismar do Espírito Santo, com a melodia se comportando como o transeunte que caminha tranquilo pela rua e, de repente, multiplica os passos sem alterar o ritmo da caminhada, mais uma das magias que Laercio usa e repassa aos seus discípulos. 

Ou o Ferragutiando, homenagem a ToninhoFerragutti. Não tem ritmo que não caiba na arte de Laercio e não saia transformado. É o caso de Castelo D’água, um samba maxixado.

É toda uma revolução embalada pela alma brasileira de Laercio, desenhando um país que, através da música, resiste ao atraso, onde os instrumentos se confraternizam para celebrar o moderno, o eterno, como preconizando os  novos  tempos  que  nascerão  das  brumas  atuais,  espalhando solidariedade, harmonia e lirismo ao seu redor.

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Para não esquecer o Brasil

por Aluízio Falcão

Quando, em 1980, o crítico de jazz Armando Aflalo apresentou-me Laercio de Freitas, pensei comigo: “É a cara de Machado de Assis”. Acho que um publicitário leu meu pensamento. Logo adiante, convidaram o grande pianista para representar Machado, como ator, em um comercial de TV.

Eu era diretor do selo Eldorado naquele tempo, e Aflalo propunha um LP com Laercio. Claro que fiquei radiante, mas um temor nublava aquela conversa. Meu receio era que o produtor, especialista em música americana, imprimisse ao disco uma pegada de jazz –o que seria inapropriado para um artista que tabelou, de igual para igual, com Radamés Gnattali, um dos maiores nomes da música brasileira em todos os tempos.

Ruminei que seria um equívoco desviar Freitas para outros caminhos, gravando um LP com sotaque americano e acordes, para usar expressão de Tom Jobim, cheios de “pisilones harmônicos” atropelando a fluência das melodias. Aflalo percebeu minhas reticências e comunicou-me o título do disco: “São Paulo no Balanço do Choro – ao nosso  amigo  Esmê”. O alvo da dedicatória  pública era  Esmeraldino Sales, excepcional

cavaquinhista, que certo dia levou o pré-adolescente Laercio para tocar no rádio e ganhar o primeiro dinheirinho em sua profissão. Isso deixava tudo claro. Laercio, como sempre fez, me contou algumas histórias de sua carreira e a conversa  fluiu alegre,  animada.  Li depois, não sei onde, que ele comentou o horror de Radamés a ensaios. Toda vez que se aproximava o dia de uma apresentação e qualquer músico do grupo indagava sobre os dias de ensaio, ele respondia: “Quem ensaia é escola de samba. Vamos tocar”. E saia tudo certo, sorria Laercio. 

Aflalo trouxe-me depois a fita gravada. Fomos juntos ao estúdio naquele prédio da Rua Major Quedinho, ao lado da antiga redação e das oficinas do Estadão. Flavinho, o engenheiro de produção, pôs a fita para rodar e experimentei emoção igual à de ouvir Pixinguinha pela primeira vez, quando rapaz. 

O choro “Ao Nosso Amigo Esmê” abria o repertório. Com apenas seis músicos (Xixa, Hurgo, Carlinhos, Ayres, Heraldo, Theo e Paulinho do Bandolim), Laercio, no auge da maestria, tocava uma obra-prima. Desenvolvia, naquela abertura, um som em que o choro ganhava força raramente atingida em sua história centenária. E se influência houve de outro gênero, vagava no ar somente um leve e sonoroso vestígio de samba. Ouvi dele, muito depois daquela audição, sua habitual referência ao “choro sambado” e ao “samba chorado”. Ali estava, há exatos 42 anos, uma levada parecida com a que ouvi recentemente do bandolim de Hamilton de Holanda na faixa “Que tal um samba?”, de Chico Buarque. 

Depois daquela primeira faixa tudo foi alumbramento, com o reforço do trombonista Felpudo e das guitarras de Ayres e Heraldo do Monte, dois monstros. Todos os choros eram de Laercio, exceto o da última faixa, “Arabiano”, do já referido Esmeraldino.

Omito detalhes porque não faço resenha e, sim, como escreviam os antigos, au hasard de la plume, desenvolvo esta quase memória sobre o pianista, compositor, arranjador e cavalheiro de fino trato, cuja casa frequentei em saraus inesquecíveis. Presididos, é claro, pela senhora Piki, esposa do artista, com assistência de suas filhas Thalma e Trícia, que herdaram dos pais a sensibilidade e a delicadeza. 

Em conversas que se prolongavam noite adentro nos bares da família Altman, fiquei sabendo, não diretamente de Laercio, mas de Helton, que o homem teve formação erudita e se graduou no Conservatório Carlos Gomes, de Campinas, a cidade natal. E que escreveu arranjos para um disco de seu colega Arthur Moreira Lima interpretando –sabe quem?– Astor Piazzolla. 

Foi no saudoso “Vou Vivendo” (nome do bar e de um choro de Pixinguinha e Benedito Lacerda) que lancei o livro “Crônicas da Vida Boêmia”. Quando todos os exemplares foram vendidos e todos os abraços trocados, Helton me disse que esperasse mais um pouco. Esperei, e minutos depois, apareceram Laercio de Freitas e Alaíde Costa, tocando e cantando para mim. Foi a primeira e única homenagem que este escrevinhador recebeu em sua trajetória boêmia.

No selo Eldorado, com o decisivo apoio de João Lara Mesquita, viabilizei discos instrumentais que vendiam pouco e valiam muito na memória musical do país que nos coube na rifa do mundo. O LP de Laercio alinhou-se a vários outros documentos fonográficos que lembro aqui, não por vanglória, mas pelo sentimento de um dever cumprido: “Inéditos de Jacob do Bandolim”, com Deo Rian; “Vadico” –reunindo grandes instrumentistas para evidenciar o talento do maior parceiro de Noel; Odette Ernest Dias soprando a “História da flauta brasileira”; Francisco Mignone e suas valsas de esquina; Edu da Gaita nos dois últimos discos; Theo de Barros em álbum duplo e esse título provocador e crítico aos grandes selos: “Primeiro Disco”; e ainda Araken Peixoto, Roberto Sion, Nelson Ayres, Anacleto de Medeiros, Chiquinha Gonzaga e outros. 

Entre alguns pianistas excepcionais Laercio foi muitas vezes coadjuvante indispensável nos discos da grande indústria musical. Isso naquele tempo analógico, sem recursos para substituir (mal) os instrumentos. Por modéstia, jamais costuma bancar o gênio que efetivamente é, nos estúdios ou nos shows de famosos cancionistas. Não faz como o performático e sublime Hermeto Paschoal. Desse diabo louro, contou-me Theo de Barros, seu parceiro no Quarteto Novo, que numa tarde chuvosa e triste, para animar o público do show, apresentou-se agitando a cabeleira desgrenhada de albino e gritando para a plateia: “Eu sou o Sol!”.

Ver ou ouvir Laercio de Freitas tocar, além do prazer estético, enseja observações sobre a personalidade e o temperamento do artista. É músico sóbrio, calmo, sem aqueles maneirismos de alguns que balançam convulsivamente a cabeça, inclinam-se sobre o teclado, martelam as teclas como pregos. Freitas mantém-se elegante, aprumado. Parece estar sozinho no mundo com a sua arte. A mão de Deus guia suas mãos, que deslizam e produzem maravilhas. Ele tira dali efeitos sonoros que requerem apuro de mestre, sem qualquer gesto exibicionista.

Isso me lembra um ilustre colega dele, o francês Alfred Cortot, morto em 1962, que deixou esta preciosa lição: “O que identifica um grande pianista é não ignorar a técnica, mas esquecê-la”. Ou seja, valer-se dela espontaneamente, e incorporá-la como se fosse parte de sua natureza. Já que entramos no movediço território das citações, cravo uma frase de Chopin em carta a sua mulher ausente: “Eu digo ao meu piano coisas que costumava dizer a você”. E não sei se foi de Drummond ou de Murilo Mendes, versando sobre o instrumento de Laercio, esta frase: “Um piano em si, já é um poema”. Acrescento que Laercio de Freitas é o seu poeta.

Não sei da vida intelectual deste artista, se já leu fulano ou sicrano. Só posso dizer que se expressa muito bem quando conversa. Deu-me sempre a impressão de que é pessoa educada e bem informada. Numa breve incursão ao conteúdo de outro de seus discos, “Terna Saudade”, encantou-me leitura instrumental que fez de “Lábios que Beijei”, sucesso de Orlando Silva; da esquecida valsa “Lua Branca”, de Chiquinha Gonzaga; e de “Casinha Pequenina”, de domínio público.

Ele provou nessa gravação ser um agudo leitor da chamada alma popular. Levando ao piano, instrumento nobre, um repertório plebeu, revela empatia diante do gosto simples e vulgar – o que a meu ver caracteriza grandeza de espírito e ausência total de pedantismo. Acho que ele é um dissidente, porque os notáveis pianistas, de modo geral, detestam a música do rádio e dos fundos de quintal. 

Em suma, senhoras e senhores, o songbook idealizado por Helton Altman é um bem-vindo e valioso registro da nossa música instrumental no século XXI. Repito que ouvir o talento deste rapaz de 80 anos, Laercio de Freitas, gênio da raça, faz com que os brasileiros não desistam do Brasil.

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